
- 09/01/2023
- Oliveira Jr.
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Anotações para uma história política de Marcelo Déda
A expressão “republicano” foi das que mais ouvi associada ao nome de Marcelo Déda, mesmo antes da proliferação dos adjetivos generosos que velórios costumam provocar. E de fato, Déda buscou ser republicano na condução do Governo, vendo no respeito às instituições do Estado de direito uma requisito do aperfeiçoamento da democracia.
É bem verdade que o republicanismo dedista nem sempre foi um atributo desejável: mesmo no Partido dos Trabalhadores houve quem o combatesse por “excessivo”, pois afastava algumas lideranças políticas, queixosas por não ver atendidos certos pleitos ou favores. De maneira elegante, Dom Henrique disse com propriedade:
“Nesta geração de políticos não conheci um homem com o espírito tão republicano quanto Marcelo Déda”, disse o arcebispo auxiliar de Aracaju, Dom Henrique Soares, … “Isso lhe gerava, inclusive, muitas incompreensões, pois esse estilo não é da cultura brasileira”[1].
Estabelecemos aqui a primeira definição da expressão: Déda era visto como republicano ao tratar de forma equilibrada prefeitos ou parlamentares, como aqueles que não eram da sua base aliada, abandonando a costumeira perseguição que os políticos, em especial no nordeste, associam à derrota eleitoral.
Rompendo a tradição da mesquinhez política, que exigia de quem estava no poder a perseguição dos que derrotara, Déda acabou por granjear respeito e a estabelecer um diálogo diferenciado, onde pleitos valiam pelos seus méritos próprios e podiam ser acatados mesmo se provenientes de um opositor. Em troca, os pleitos dos aliados também eram julgados pela mesma medida, e, portanto, deviam ser recusados quando confundiam as esferas do público e do privado.
De alguma forma, foi compreendido:
“O maior avalista para as mudanças que se avizinhavam para a história de Sergipe era sua [de Déda] própria história, sua trajetória, sua honestidade, sua dignidade, sua integridade ética e moral…
Exercia o republicanismo em sua inteireza e não tinha vergonha de se ajoelhar, se preciso fosse, para que do gesto singular dos humildes emergisse a concórdia e nascesse a paz. Mesmo ajoelhado, mostrou-nos ele, um homem se torna grande e seus propósitos elevados.[2]”
E isto é ser republicano, perguntar-me-ão? Sim, respondo conforme creio, mas não só. O governador sergipano tinha clareza dos seus atos, proveniente de reflexão aprofundada e credora das melhores fontes do pensamento político. Certamente poderão objetar-me que este comportamento reflete apenas honestidade e franqueza, valores nobres e meritórios, mas que podem se restringir ao campo da ética pessoal, não se aplicando de forma automática à ação política.
Por isso ocorre-me perguntar: que exemplos podemos buscar nas iniciativas de Marcelo Déda enquanto parlamentar, prefeito ou governador, que traduzam o que aqui chamo de postura republicana? Que ensinamentos podemos obter ao buscar uma melhor compreensão do qualificativo?
Que ensinamentos podemos obter ao buscar uma melhor compreensão do “republicanismo” como atributo de políticos?
Se, na história, a expressão “republicano” se construiu inicialmente em oposição à monarquia como regime, na modernidade a expressão ganhou contornos mais amplos. E se diferencia, ainda que complemente, do conceito de democracia, que afinal pode também existir num regime monárquico.
Um socialista português[3] diz que “ser Republicano implica a interiorização de um conjunto de valores que estão adjacentes à ideia de República. A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade que advém da bicentenária Revolução Francesa. O autogoverno, exercido por cidadãos para os cidadãos. Uma ética republicana e de serviço público para aqueles que são eleitos para o exercício de cargos públicos, extensível a todos os que têm uma relação laboral com o Estado, e que o devem fazer orientados apenas e só pelo interesse público, pelo respeito pela Res Publica, criando domínios estanques entre público e privado e respectivos interesses, agindo com frugalidade; significa também que se devem sentir honrados por poderem servir o seu país e os seus concidadãos, dando o melhor de si no exercício destes cargos; não os encarando como uma forma de enriquecimento, numa palavra dedicação.”
Vemos aí conceitos que a ação de Déda como Governador ou prefeito ilustra com propriedade, como vimos em outros depoimentos.
“Déda plantou corações em cada município sergipano, como prova de amor pelo povo…
Quando esse povo o elegeu governador, no primeiro turno, em 2006, Déda rompeu com séculos de mandos e desmandos das oligarquias. Mas, republicano, governou com todos e para todos. Foi um homem agregador, moderador de conflitos e magnânimo, embora fosse muito bom de briga.
Lutou o bom combate, lutou pelos mais humildes, engrandeceu o menor estado do Brasil e honrou, como poucos, as bandeiras históricas do PT.[4]”
Cardoso, já citado, associa o conceito de república a uma postura de civismo: “as virtudes Republicanas do civismo, da participação cidadã ou seja uma cidadania activa e interventiva, da sobreposição do interesse colectivo ao interesse individual são elementos essenciais da formação do pensamento Republicano. Mas também a transparência das instituições públicas, o carácter não permanente do exercício de cargos públicos assente no princípio da renovação dos mandatos, a aposta na instrução e na qualificação dos cidadãos”.
Trecho de uma fala clássica, dirigida à Presidenta Dilma,no lançamento do programa Brasil Sem Miséria, há justo um ano atrás:
“O que a Senhora escreveu, na marca do seu governo, foi a compreensão, foi a ideia de que nenhuma nação se legitima na história, se despreza a liberdade e se ignora o valor da igualdade. Essa que é a mais generosa ideia já produzida pelo gênero humano. O que a Senhora diz nesse slogan à nação brasileira é que nenhuma prosperidade é civilizatória se ignora milhões de patrícios, condenados à escravidão da fome, ou aprisionados, excluídos da vida na prisão da miséria. O que a Senhora quis dizer com esse slogan, Presidenta, que não há como falar em progresso ou em desenvolvimento, quando uma pequena minoria de um país, vive a pós-modernidade, usufrui os avanços da tecnologia, opera nos mercados financeiros do mundo com um mero toque de dedo no teclado de computador, e bilhões de seres humanos vivem como órfãos da solidariedade. Os “sans-culottes” da pós-modernidade, vivendo como antes da Revolução Francesa, sem a liberdade que a fome tira, sem a igualdade que a miséria ofende e sem a fraternidade que lança na vala comum a dignidade do ser humano.”
Acho útil destacar algumas iniciativas que ilustram, na minha opinião, sua visão peculiar do que aqui abarco no rótulo de “repúblicano”, que envolve o respeito ao estado de Direito e às suas instituições, de uma forma que se diferenciava do proselitismo certo políticos, tão comum quanto falso, e que nele vinha embelezado pela oratória fácil, permitia-lhe transmitir com facilidade os fundamentos da sua reflexão política.
É o que acontece quando ele decide, ainda prefeito, fazer do sesquicentenário de Aracaju um grande momento de civismo, de reencontro entre o morador e sua capital, um belo momento de recuperação da auto-estima do aracajuano.
Faz a entrega de obras físicas (habitações populares, Avenida São Paulo) junto com o Presidente da República e anuncia outras tantas, mas os atos simbólicos perduram até hoje: criou uma medalha do sesquicentenário emitida pela Casa da Moeda, dada a uma bem escolhida lista de homenageados e plantou um bosque comemorativo no Parque da Sementeira, um ato singelo mas que lhe deu tão grande prazer que ele o escolheu como local para suas cinzas.
Os atos de entrega de comendas e homenagens, constantes na administração municipal, foram conduzidos por ele como ilustração dos seus princípios políticos: ao mesmo tempo que premiava ícones do mundo cultural da cidade, homenageava os velhos militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura militar ou que foram, de alguma forma, perseguidos por suas idéias políticas.
Mesmo iniciando a administração tendo como adversário o presidente da Câmara de Vereadores, exigia do seu cerimonial que distinguisse sempre a figura do chefe do poder legislativo, que figurava nas solenidades logo após o prefeito, respeito que ele não esquecia de cobrar do cerimonial. Lembrava sempre, para justificar seu cuidado, o seu período de parlamentar, sempre na oposição e as suas viagens às democracias amadurecidas européias e americana, onde via com admiração o funcionamento do parlamentarismo. Lembrava sempre que, na câmara dos comuns, o tempo dos discursos era igualmente repartido entre situação e oposição.
Seu preparo como parlamentar facilitava as viagens e as relações com outras prefeituras, órgãos federais e organismos multilaterais como BID, BIRD e outros. Fez daí um ponto de apoio para fortalecer as suas reivindicações de prefeito junto ao Governo Federal, ciente de que o peso de Sergipe, na contexto da federação, lhe era desfavorável, mesmo apesar da amizade com o Presidente Lula. Por isso buscou tornou-se militante e dirigente da Frente Nacional de Prefeitos, ecoando reivindicações do conjunto de prefeitos das capitais brasileiras.
Daí para a prática do que se chama hoje de “diplomacia local” foi um pulo: Déda viajou a Tucuman, na Argentina, junto com outros Governadores nordestinos, na sua primeira viagem internacional como Governador, contribuindo com o esforço do Presidente Lula de reforçar o Mercosul. Seu desempenho como orador e sua fácil compreensão da prática diplomática, lhe permitiu assumir desafios maiores: foi aos Estados Unidos para atrair empreendedores, e acompanhou tanto o Presidente Lula como a Presidenta Dilma em missões no exterior, nos EUA e na Índia.
Nas viagens faz propaganda Sergipe. Vai ao BID, ao BIRD, ao FIDA, abre portas para mostrar seus programas sociais e buscar alternativas de financiamento. Reconhecido como liderança nordestina, estabelece relações respeitosas com líderes importantes como Enrique Iglésias, José Luiz Moreno, do BID; o embaixador americano Clifford Sobel, Makhtar Diop do BIRD, depois o próprio Roberto Zoelick, entre outros.
Marcelo Déda falando a Dilma, em fevereiro de 2013, no lançamento do programa de combate à miséria: “O que a Senhora escreveu, na marca do seu governo, foi a compreensão, foi a ideia de que nenhuma nação se legitima na história se despreza a liberdade e se ignora o valor da igualdade. Essa, que é a mais generosa ideia já produzida pelo gênero humano. O que a Senhora diz nesse slogan à nação brasileira é que nenhuma prosperidade é civilizatória se ignora milhões de patrícios, condenados à escravidão da fome, ou excluídos da vida na prisão da miséria. O que a Senhora quis dizer com esse slogan, Presidenta, é que não há como falar em progresso ou em desenvolvimento, quando uma pequena minoria de um país vive a pós-modernidade, usufrui dos avanços da tecnologia e opera nos mercados financeiros do mundo com um mero toque de dedo no teclado de computador enquanto bilhões de seres humanos vivem como órfãos da solidariedade. Os “sans-culottes” da pós-modernidade, vivendo como antes da Revolução Francesa, sem a liberdade que a fome tira, sem a igualdade que a miséria ofende e sem a fraternidade que lança na vala comum a dignidade do ser humano. Portanto, Presidenta, hoje é um dia histórico para a Nação Brasileira.”
Déda tinha uma visão cosmopolita do mundo, sabia que a província não podia fechar-se em sí própria e que cabia a ele, como governante, levar ao mundo a notícia da sua terra e reforçar os valores da sergipanidade que ele proclamava.
Um exemplo marcante, para mim, que demonstram seus cuidados republicanos: a devoção com que Déda se dedica à recuperação o Palácio Oímpio Campos, primeiro — antes mesmo de transformá-lo em Museu — no campo do puramente simbólico, mostrando como aquele lugar foi importante para a história de Sergipe.
Faz questão de discursar da sacada do palácio em sua posse como Governador, contrariando as recomendações da segurança e do cerimonial, que temiam pelo mau estado de conservação do lugar e pela sucessão de eventos da posse (Assembléia Legislativa, Catedral, Palácio) no mesmo dia. Faz, da sacada, um discurso memorável e de indiscutível empatia com a multidão que o ovacionava.
Depois, cuidou do restauro do edifício. De início, impaciente com a lentidão da obra e a dificuldade burocrática dos contratos. Depois, apaixonou-se pelo rigor técnico do trabalho de restauro, e se envolveu pessoalmente nos detalhes. Reconstruído o cenário, aprofundou comigo a idéia de ter lá um museu da história da república de Sergipe.
Sob sua orientação, cuidei pessoalmente de cada passo da reforma, da criação do Museu e da inauguração. Foi de Marcelo Déda idéias como dedicar uma sala às mulheres que primeiro assumiram cargos públicos em Sergipe (eu tinha lhe mostrado como o mobiliário de um dos quartos tinha sido destinado às mulheres, com objetos de toucador e mobiliário mais delicado: foi dele a idéia de dedicar o local à memória da participação política das mulheres na história de Sergipe, alertando-me para não esquecer a Senadora Maria do Carmo, adversária, mas primeira mulher sergipana a ocupar uma cadeira no Senado, assim como a Deputada Tânia Soares, primeira sergipana Deputada Federal sucedendo‑o na casa, entre outras).
O Olímpio Campos foi o principal cenário da república de Sergipe. Lá, Déda recebeu o Presidente Lula, lá Déda recebeu a Presidenta Dilma e os governadores de todos os estados do nordeste do Brasil. Lá, Déda quis ser velado e despedir-se do povo que o elegeu e que o amava.
O Palácio Olímpio Campos, a casa da república, que ele preferiu não habitar, foi transformada por ele em um museu da história do seu povo. E, mais tarde, foi o lugar que ele veio a escolheu para acolhê-lo em sua despedida. Nada mais apropriado para um republicano.
[1] Fala de Dom Henrique publicada pelo Jornal da Cidade, em 10/12/2013. Ver em http://www.jornaldacidade.net/politica-leitura/62534/em-missa,-deda-e-lembrado-como-republicano.html#.Uv9bnHnu6Nw, consultado em 14/02/2014.
[2] Dos irmãos Elcinho Santana e Edson Júnior, em comentário ao blog de Luis Nassif, em http://jornalggn.com.br/comment/164887#comment-164887, consultado em 14/02/2014.
[3] CARDOSO, Frederico Bessa. Ser republicano, artigo no blogo Aurora do Porto. http://auroradoporto.wordpress.com/2012/10/05/ser-republicano/, consultado em 14/02/2014.
[4] Lelê Teles, Sobre as Cinzas de Marcelo Déda
http://fastosenefastos.blogspot.com.br/2013/12/sobre-as-cinzas-de-marcelo-deda.html, consultado em 14 de fevereiro de 2014.

O orador diante da obra-prima da oratória. Em momento de lazer, em Washington DC, Déda visita o Memorial de Lincoln e é fotografado diante da gravação em pedra do texto do discurso de Gettysburg, de 1863 – um clássico do gênero (foto do acervo de OJr.).