A Libras e os surdos brasileiros. No caso do Brasil, a língua de gestos usada predominantemente por surdos é a Libras — Língua Brasileira de Sinais. Mas não é única língua gestual brasileira: há outras, usadas entre os índios da Amazónia. Pode até ser surpresa para algumas pessoas saber que a língua gestual não é universal. Nos EUA, por exemplo, padronizou-se o uso da ASL — American Sign Language‑, bastante diferente da nossa Libras, que no Brasil foi herdada da língua de sinais francesa. Surdos, porém, aprendem muito rapidamente outras línguas gestuais, de forma que um surdo brasileiro usando Libras e um surdo americano usando ASL conseguirão entender-se mais rapidamente que um brasileiro e um americano falando português e inglês apenas.
Sem dúvida o uso da Libras vem avançando no Brasil, e as pessoas aos poucos vão se acostumando aos sinais, inclusive reduzindo o preconceito de conviver com surdos. É fácil ver hoje grupos de jovens surdos conversando em Libras. O incentivo da legislação para o emprego, também facilita a divulgação social da língua gestual, e cada vez mais pessoas querem aprender a usá-la.
Mas, resolvido ou pelo menos melhorado o mais grave problema dos surdos, que é negação do acesso à sua língua gestual e principal método de comunicação, tão vital que constitui um idioma próprio e peculiar, quais as dificuldades seguintes para o processo educacional e de inclusão social?
A primeira é a necessidade de divulgação da cultura surda e da compreensão, pelos ouvintes, do seu significado. De maneira geral, essa é uma questão da acessibilidade. Da mesma forma que a sociedade entende hoje que é justo e elegante permitir que idosos enfrentem menos dificuldades nas filas ou nos esta-
ouvintes II
a língua de sinais. Isso não pode ser feito na escola com o uso de intérpretes, porque esses intérpretes, como o nome já deixa claro, rEalizam apenas o pro- cesso de transformação de urna língua para outra.
Tento explicar. se uma criança que aprendeu o português entrar em uma escola americana, poderá com o uso do intérprete aprender a língua inglesa e tornar-se apta nos dois idiomas. Se isso acontece muito pivcocemente com uma criança ouvinte, será provável que ela esqueça o português e refaça todo o seu processo de conhecimento na nova língua. Mas o que acontece com as pessoas surdas, em que a restrição fisica impede a aprendizagem natural do idioma falado, seja o português ou o inglês? Resposta: a completa incapacitação para a aprendizagem, em qualquer das duas línguas.
Por isso, é fundamental que o estado brasileiro, como acontece hoje na maioria do mundo civiliza- do, crie condições de existência de escolas de lín- guas gestuais. Elas são fundamentais para: em primeiro lugar, permitir às crianças surdas que superem a barreira inata da incapacidade de aprendizagem de um idioma, qualquer que seja ele; em segundo lugar, permitir que ouvintes possam domi- nar a língua de gestos, de maneira que os surdos encontrem intérpretes capazes de auxiliá-los na compreensão do português e assim avançar no pro cesso de aprendizagem.
cionamentos, que computadores e instrumentos ele- O respeito à cultura surda, cuia principal espe-
OPINIÃO PESSOAL
No caso dos stuxlos, só podemos falar em inclusão social depois de vencida a linguística. Para isso é preciso que as crianças surdas tenham contato precoce com a Libras, e é preciso que o próprio idioma surdo, a Libras, seja cultivado e enriquecido pela experiência de vida e aprendizagem dos próprios surdos. É um processo de afirmação cultural, tal qual todos reconhecemos quando pensamos nos idiomas orais (haveria Brasil, por exemplo, se a língua portuguesa não tivesse sido fator de unificacão e afirmação cultural perante o resto do mundo?)
trônicos sejam mais adequados para a leitura por deficientes visuais, ou que o piso das praças possua elementos tácteis para ser reconhecidos por cegos, é importante aprender como conviver com surdos, que também possuem suas especificidades.
É importante saber que surdos morrem muito de acidentes de trânsito, por exemplo, porque motoris tas imprudentes sempre supõem que as pessoas à sua volta podem ouvir o som da buzina dos carros e se afastar do caminho — o que não funciona com tanta certeza assim com surdos. De igual forma, o socorro médico de urgência prestado a surdos deve evitar imobilizar suas mãos, caso contrário eles não terão como prestar informações a quem for atendê-los.
De maneira geral, há um avanço significativo no Brasil nas políticas de acessibilidade, vistas como um requisito de cidadania. Isso é sem dúvida um grande progresso. Mas o maior perigo que assusta hoje as pessoas que buscam escolas baseadas em Libras é a compreensão míope de alguns educadores que confundem a inclusão — como politica de ensino público — com a privação da possibilidade de ensino do idioma gestual.
1 SURDOS PRECISAM APRENDER LIBRAS
De fato, desde a chamada Declaração de Salamanca a ideia predominante dos educadores é que o ensino deva ser uma prática social capaz de superar as diferenças individuais dos alunos no processo educacional, de forma igualitária e solidária. Uma escola realmente acessível, portanto, não distingue ‘deficiências’ , e será capaz de suprir quaisquer restrições de aprendizagem que seja, decorrentes ou não de incapacitação fisica. O problema é que desses princípios genéricos, recepcionados inclusive pela legislação brasileira de inclusão, decorrem às vezes um falso cificidade é a língua gestual, é uma questão que vai além do processo educacional e se situa na vertente dos direitos à cidadania e respeito humanos. Para valorizá-la é preciso que a educação de crianças surdas comece precocemente, através da língua de sinais. Já os deficientes auditivos (ou seja, pessoas com limitações auditivas, mas capazes de ouvir mediante o uso de aparelhos auditivos e até de implante co clear) devem receber assistência capaz de ajudá-los a, quando possível, dominar o entendimento da língua falada. Nunca é demais relembrar que é tolice a ideia de que aprender sinais reduz a capacidade do surdo entender o mundo ouvinte: esta teoria do sen- so comum não tem suporte científico e a realidade é exatamente o inverso, ou seja, a língua de sinais facilita a e uso do idioma falado.
Surdos merecem apoio no desenvolvimento da Libras. Como língua, a Libras possui várias restri- çóes, sendo a mais dramática delas o fato de não possuir representação escrita (há estudos visando à criação de um modelo para ‘escrever’ sinais, que ainda é pouco difundido). Se os surdos ficarem limitados à Libras, portanto, terão um forte empeci- lho ao desenvolvimento cultural e avanço na escolaridade. No entanto, o desenvolvimento da linguagem se traduz exatamente na ampliação do vocabulário, que dá precisão e uniformidade à língua (intérpretes da Libras sabem que os sinais variam às vezes de um Estado para outro, e que os surdos adoram criar gírias e dialetos próprios dentro da língua, que às vezes identificam e reforçam guetos culturais discriminatórios). Da mesma forma que o português ou qualquer outra língua falada, o idi- oma é por si só sujeito de um processo de desenvolvimento cultural.
É preciso proporcionar meios aos surdos para si], a língua de gestos usada predominantemente por surdos é a Libras — Língua Brasileira de Sinais. Mas não é única língua gestual brasileira: há outras, usadas entre os índios da Amazónia. Pode até ser surpresa para algumas pessoas saber que a língua gestual não é universal. Nos EUA, por exemplo, padronizouse o uso da ASL — American Sign Language—, bastante diferente da nossa Libras, que no Brasil foi herdada da língua de sinais francesa. Surdos, porém, aprendem muito rapidamente outras línguas gestuais, de forma que um surdo brasileiro usando Libras e um surdo americano usando ASL conseguirão entenderse mais rapidamente que um brasileiro e um americano falando português e inglês apenas.
Sem dúvida o uso da Libras vem avançando no Brasil, e as pessoas aos poucos vão se acostumando aos sinais, inclusive reduzindo o preconceito de conviver com surdos. É fácil ver hoje grupos de jovens surdos conversando em Libras. O incentivo da legislacão para o emprego, também facilita a divulgação social da língua gestual, e cada vez mais pessoas querem aprender a usá-la.
Mas, resolvido ou pelo menos melhorado o mais grave problema dos surdos, que é negação do acesso à sua língua gestual e principal método de comunicaçáo, tão vital que constitui um idioma próprio e peculiar, quais as dificuldades seguintes para o processo educacional e de inclusão social?
A primeira é a necessidade de divulgação da cultura surda e da compreensão, pelos ouvintes, do seu significado. De maneira geral, essa é uma questão da acessibilidade. Da mesma forma que a sociedade entende hoje que é justo e elegante permitir que idosos enfrentem menos dificuldades nas filas ou nos estacionamentos, que computadores e instrumentos ele trônicos sejam mais adequados para a leitura por deficientes visuais, ou que o piso das praças possua elementos tácteis para ser reconhecidos por cegos, é importante aprender como conviver com surdos, que também possuem suas especificidades.
É importante saber que surdos morrem muito de acidentes de trânsito, por exemplo, porque motoristas imprudentes sempre supõem que as pessoas à sua volta podem ouvir o som da buzina dos carros e se afastar do caminho — o que não funciona com tanta certeza assim com surdos. De igual forma, o socorro médico de urgência prestado a surdos deve evitar imobilizar suas mãos, caso contrário eles não terão como prestar informações a quem for atendê-los.
De maneira geral, há um avanço significativo no Brasil nas políticas de acessibilidade, vistas como um requisito de cidadania. Isso é sem dúvida um grande progresso. Mas o maior perigo que assusta hoje as pessoas que buscam escolas baseadas em Libras é a compreensão míope de alguns educadores que con- fundem a inclusão — como política de ensino público — com a privação da possibilidade de ensino do idioma gestual.
1 SURDOS PRECISAM APRENDER LIBRAS
De fato, desde a chamada Declaração de Salamanca a ideia predominante dos educadores é que o ensino deva ser uma prática social capaz de superar as diferenças individuais dos alunos no processo educacional, de forma igualitária e solidária. Uma escola realmente acessível, portanto, não distingue ‘deficiências’ , e será capaz de suprir quaisquer restrições de aprendizagem que seja, decorrentes ou não de incapacitação física. O problema é que desses princípios genéricos, recepcionados inclusive pela legislação brasileira de inclusão, decorrem às vezes um falso entendimento das virtudes e limitações do ensino para surdos. É que algumas pessoas veem nas escoIas de surdos a prática de uma política de segregação, oposta à inclusão. Nada mais falso.
A diferença é que o ensino de um idioma não pode ser feito sem a convivência de pessoas que pratiquem o mesmo idioma. Ou seja, se os surdos não tiverem convivência comum, entre surdos, eles não aprendem tuguês entrar em uma escola americana, poderá com o uso do intérprete aprender a língua inglesa e tornar-se apta nos dois idiomas. Se isso acontece muito precocemente com uma criança ouvinte, será provável que ela esqueça o português e refaça todo o seu processo de conhecimento na nova língua. Mas o que acontece com as pessoas surdas, em que a restrição física impede a aprendizagem natural do idioma falado, seja o português ou o inglês? Resposta: a completa incapacitação para a aprendizagem, em qualquer das duas línguas.
Por isso, é fundamental que o estado brasileiro, como acontece hoje na maioria do mundo civilizado, crie condições de existência de escolas de línguas gestuais. Elas são fundamentais para: em primeiro lugar, permitir às crianças surdas que superem a barreira inata da incapacidade de aprendizagem de um idioma, qualquer que seja ele; em segundo lugar, permitir que ouvintes possam dominar a língua de gestos, de maneira que os surdos encontrem intérpretes capazes de auxiliá-los na compreensão do português e assim avançar no processo de aprendizagem.
No caso dos surdos, só podemos falar em inclusão social depois de vencida a barreira linguística. Para isso é preciso que as crianças surdas tenham contato precoce com a Libras, e é preciso que o próprio idioma surdo, a Libras, seja cultivado e enriquecido pela experiênciade vida e aprendizagem dos próprios surdos. É um processo de afirmação cultural, tal qual todos reconhecemos quando pensamos nos idiomas orais (haveria Brasil, por exemplo, se a língua portuguesa não tivesse sido fator de unificacão e afirmação cultural perante o resto do mundo?) O respeito à cultura surda, cuja principal especificidade é a língua gestual, é uma questão que vai além do processo educacional e se situa na vertente dos direitos à cidadania e respeito humanos. Para valorizá-la é preciso que a educação de crianças surdas comece precocemente, através da língua de sinais. Já os deficientes auditivos (ou seja, pessoas com limitações auditivas, mas capazes de ouvir mediante o uso de aparelhos auditivos e até de implante coclear) devem receber assistência capaz de ajudá-los a, quando possível, dominar o entendimento da língua falada. Nunca é demais relembrar que é tolice a ideia de que aprender sinais reduz a capacidade do surdo entender o mundo ouvinte: esta teoria do senso comum não tem suporte científico e a realidade é exatamente o inverso, ou seja, a língua de sinais facilita a compreensão e uso do idioma falado.
Surdos merecem apoio no desenvolvimento da Libras. Como língua, a Libras possui várias restriçóes, sendo a mais dramática delas o fato de não possuir representação escrita (há estudos visando à criação de um modelo para ‘escrever’ sinais, que ainda é pouco difundido). Se os surdos ficarem limitados à Libras, portanto, terão um forte empecilho ao desenvolvimento cultural e avanço na escolaridade. No entanto, o desenvolvimento da linguagem se traduz exatamente na ampliação do vocabulário, que dá precisão e uniformidade à língua (intérpretes da Libras sabem que os sinais variam às vezes de um Estado para outro, e que os surdos adoram criar gírias e dialetos próprios dentro da língua, que às vezes identificam e reforçam guetos culturais discriminatórios). Da mesma forma que o português ou qualquer outra língua falada, o idioma é por si só sujeito de um processo de desenvolvimento cultural.
É preciso proporcionar meios aos surdos para que esse desenvolvimento aconteça. A existência de uma cultura surda permite a eles afirmarem-se enquanto sujeitos capazes, permite que se reconheçam perante o mundo, compreendam a si próprios e sejam compreendidos pelos outros. A nós, permite o respeito à diferuwa cultural, e o direito à educação que ajude a superar as limitações da incapacidade fisica.