
- 17/12/2020
- Oliveira Jr.
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Ferramentas Importantes para o e‑learning
José de Oliveira Júnior[1]
Resumo:
Como em muitos campos do avanço tecnológico recente, ferramentas digitais estão permitindo a expansão do suporte às pessoas com necessidades especiais. A expressão tecnologia assistiva tem se tornado recorrente para designar um conjunto amplo de ferramentas, que incluem equipamentos, serviços e recursos diversificados capazes de proporcionar ajuda na aprendizagem e interação social de pessoas com deficiência, permitindo avanços nas estratégias educacionais de ensino-aprendizagem. Neste texto, partimos do conceito de tecnologia assistiva ou ajudas técnicas, como sugere a legislação educacional brasileira, para mapear alguns aspectos de importância decisiva na educação e inclusão social de pessoas surdas (e não apenas deficientes auditivos), focando nas especificidades das línguas de sinais como a LIBRAS e seu uso educacional e no e‑learning, refletindo sobre como essas ferramentas podem contribuir para a cultura digital e formação de professores. Introduz elementos para a reflexão da ética nas escolhas tecnológicas, que não podem estar dissociadas da introdução da tecnologia assistiva na educação especial.
Palavras-chave: e‑learning, tecnologia assistiva, ajudas técnicas, surdez, LIBRAS, cultura digital.
Abstract:
As in many fields of recent technological advancement, digital tools are enabling the expansion of support for people with special needs. The term assistive technology has become recurrent to designate a broad set of tools, which include equipment, services and diversified resources capable of providing help in the learning and social interaction of people with disabilities, allowing advances in educational teaching-learning strategies. In this text, we start from the concept of assistive technology or technical aids, as suggested by the Brazilian educational legislation, to map some aspects of decisive importance in the education and social inclusion of deaf people (and not just the hearing impaired), focusing on the specificities of sign languages such as LIBRAS and its educational use and in e‑learning, reflecting on how these tools can contribute to digital culture and teacher training. It introduces elements for the reflection of ethics in technological choices, which cannot be dissociated from the introduction of assistive technology in special education.
Keywords: e‑learning, assistive technology, technical aids, deafness, LIBRAS, digital culture.
1 Introdução
O conceito de tecnologia assistiva é sem dúvida bastante amplo, pois abrange uma diversidade de instrumentos que, genericamente, podem se beneficiar de avanços recentes tecnológicos recentes, mas que de maneira alguma limitam-se ao território do digital. Bersch (2017)[2] entende que o termo abrange “uma ampla gama de equipamentos, serviços, estratégias e práticas concebidas e aplicadas para minorar os problemas funcionais encontrados pelos indivíduos com deficiências”.
Desta forma, as tecnologias assistivas são distribuídas por categorias de uso, que incluem desde objetos do uso diário de concepção relativamente simples (mas muito funcionais para quem precisa deles) como talheres adaptados ou cadarços especiais com molas, até dispositivos bem mais complexos que utilizam computadores para gerenciar funções sofisticadas agregadas a próteses e órteses, como em alguns aparelhos auditivos.
No entanto, dada a abrangência do conceito, é importante delimitá-lo pela exclusão daquilo que não deve ser tratado como tecnologia assistiva, como segue:
Quando então a tecnologia pode ser considerada Assistiva no contexto educacional? Quando ela é utilizada por um aluno com deficiência e tem por objetivo romper barreiras sensoriais, motoras ou cognitivas que limitam/impedem seu acesso às informações ou limitam/impedem o registro e expressão sobre os conhecimentos adquiridos por ele; quando favorecem seu acesso e participação ativa e autônoma em projetos pedagógicos; quando possibilitam a manipulação de objetos de estudos; quando percebemos que sem este recurso tecnológico a participação ativa do aluno no desafio de aprendizagem seria restrito ou inexistente. São exemplos de TA no contexto educacional os mouses diferenciados, teclados virtuais com varreduras e acionadores, softwares de comunicação alternativa, leitores de texto, textos ampliados, textos em Braille, textos com símbolos, mobiliário acessível, recursos de mobilidade pessoal etc. (Bersch, 2017, p. 12).
Um aspecto a destacar é que o foco da nossa atenção nesse artigo é o sujeito que se define culturalmente como surdo e utiliza a língua de sinais. Esse ponto tem uma importância específica, que deve ser destacada aqui: mesmo especialistas no trabalho junto a pessoas com deficiência às vezes concentram seus esforços em aparelhos para fazer ouvir. No entanto, o que pode ser uma solução para o deficiente auditivo (pessoa que perdeu parcialmente a capacidade de ouvir, mas que permanece capaz de se comunicar oralmente) é muitas vezes, em relação ao surdo, uma repetição do velho preconceito capacitista: pensa-se na surdez como doença e em proporcionar a audição como cura, e assim descreve-se os recursos da tecnologia assistiva como aqueles voltados a “fazer ouvir”, ou “curar a surdez”, relacionando-se uma gama de aparelhos auditivos e todo um universo de periféricos ao seu redor que serve para a amplificação de sinais sonoros. Esses equipamentos simplesmente não ajudam no mais importante problema que uma criança surda precisa resolver para conseguir desenvolver-se como pessoa, que é adquirir linguagem, ser capaz de assimilar uma língua (que obviamente não precisa ser oral).
Para se entender a abrangência da LIBRAS, recorremos aqui a Barth & Santarosa (2005, p. 110):
“Tanto a LIBRAS quanto sua escrita possui um conjunto de regras como gramática, semântica, pragmática, preenchendo todos os requisitos científicos para que seja considerada um instrumental linguístico possuidora de poder e força comunicativa. É constituída por todos os elementos classificatórios identificáveis do que requer um conceito de ‘língua”, e é necessário prática para que haja um aprendizado. É uma língua viva, que possui autonomia, sendo reconhecida pela linguística.”
Com essas premissas, procuramos destacar a contribuição de algumas tecnologias de maior relevância no ensino de surdos com LIBRAS, verificar como o uso de tecnologias assistivas pode levar a resultados de aprendizagem mais significativos, quer no ambiente convencional de sala de aula ou no e‑learning. Para isso baseamo-nos na literatura acadêmica sobre o tema, que é na verdade ainda relativamente escassa, como também na experiência pessoal de convivência com surdos.
Obviamente, um passo importante posterior seria ampliar essa pesquisa avaliando diretamente com os próprios surdos a eficiência das ferramentas, com questionários aprofundados e uma amostragem mais bem definida. Contudo, isso levaria esse artigo a uma complexidade que extrapola o objetivo inicial do autor, de mapeamento inicial da proposta.
2 Cognição da Língua e Cultura Surda
Ao longo da história, parece que o preconceito social e a incompreensão sobre as dificuldades do surdo para a aprendizagem causaram mais malefícios às pessoas surdas que a própria privação da audição. Somente o puro preconceito e a ignorância podem justificar o temor que algumas sociedades apresentaram da língua de sinais, prestigiando propostas – em tristes momentos, defendidas também por educadores – de privar os surdos da possibilidade de uso dos sinais para obrigá-lo a falar tal qual os ouvintes.
Modernamente, surdos frequentam cursos de nível superior e participam de atividades profissionais que requerem alto desempenho cognitivo, mas essa é uma realidade ainda pouco comum, longe de poder ser admitida com regra geral para as pessoas surdas, sobretudo para aquelas que além da privação da audição sofrem também com a pobreza e exclusão social. O fato alentador é que, com a aprendizagem precoce da língua de sinais e o uso de ferramentas tecnológicas de apoio, os surdos estabelecem canais e comunidades de apoio que permitem rápidos avanços na aprendizagem, e a própria sociedade ocupa-se hoje de combater e criminalizar o preconceito, facilitando a convivência social e permitindo aos surdos o respeito e apoio que precisam.
Nem sempre foi assim, e os surdos já considerados párias, incapazes, e adjetivados da pior forma possível quando não sujeitos a exclusão, discriminação, tortura e até mesmo assassinados. Mas a pior e mais constante agressão é aquela que se verifica quando lhe são negadas condições de acesso à aprendizagem de língua de sinais. Privados da possibilidade de aprendizagem de uma língua, os surdos perdem a capacidade de aprendizagem e convício social, prejudicando o desenvolvimento intelectual.
Passo importante na história dos surdos foi sem dúvida o protagonismo de professores surdos, que se tornaram referência de conhecimento para seus pares. Lage e Kelman (2019), recuperando a história da atuação do notável professor francês surdo Ferdinand Berthier, que viveu na França entre 1803 e 1886, mostram como naquela época esse já era um aspecto considerado, e concluem seu estudo pugnando por uma afirmativa que consideram suficientemente demonstrada pela história: “Surdos precisam ser educados privilegiando a língua de sinais.” (Lage & Kelman, 2019, p. 19).
Se esse é princípio é admitido, outra premissa que evita distorções conceituais é destacar que a LIBRAS, assim como as demais línguas de sinais, não são tecnologias, e sim manifestação cultural própria de pessoas que, por uma restrição sensorial, substituíram a língua falada convencional por outra, que contêm todos os elementos relevantes necessários à plenitude da comunicação, da aprendizagem e do desenvolvimento sociocultural dos que a praticam.
Cabe igualmente distinguir os surdos de pessoas com deficiências auditivas. A condição da surdez é cultural: o sujeito surdo se define como tal, encontra identidade com outros surdos e leva em conta como opção linguística o uso da língua de sinais. Diferente de uma pessoa com uma restrição auditiva que pode ser compensada, por exemplo, por um aparelho auditivo – aí sim, um exemplo de tecnologia assistiva – e com esse tipo de apoio obter educação e desenvolvimento linguístico pleno usando a língua falada.
Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável, ajustando‑o com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das ‘almas’ das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo (Perlin & Strobel, 2014, p. 24).
O respeito a essa concepção cultural define o espaço em que podemos situar a busca por tecnologias assistivas eficientes de apoio ao ensino de surdos: naquilo em elas são assistivas, o que quer dizer, auxiliares. Nunca ultrapassando o limite da concepção de mundo em que o próprio surdo se coloca e que exige para a aprendizagem o respeito à sua língua. Assegurada essa premissa, as tecnologias exercem um importante papel, que veremos a seguir relatados para algumas tecnologias especificas.
3 Tecnologia Assistiva para ensino de Surdos
3.1 Ferramentas de utilização do “Signwrinting”
O “Signwriting”, um sistema de escrita para línguas gestuais, foi criado por Valerie Suton e vem se destacando mundialmente como um dos mais importantes avanços para consolidar e padronizar as línguas gestuais no mundo. A LIBRAS, assim como a ASL (American Sign Language, usada no EUA), ou as línguas de sinais de vários outros países, não tem uma representação fonética. Uma forma de escrever a língua sem precisar de uma transcrição intermediária por línguas faladas cria possibilidades fantásticas de desenvolvimento linguístico.
No Brasil, a pesquisadora surda Marianne Stumpf iniciou uma importante discussão sobre a introdução da escrita de língua de sinais, destacando o signwiting como tecnologia na escrita, alfabetização e letramento de pessoas surdas, destacando ainda as possibilidades abertas pela linguagem para o registro da cultura surda (Stumpf, 2005).
Como é uma linguagem pictórica, a escrita requer alguma habilidade gráfica e essa é uma dificuldade considerável para a difusão da escrita entre os surdos. Essa dificuldade é minorada pelos os avanços na WEB de ferramentas assistivas, organizando sistemas interativos para formar um grande banco de dados de representações pictóricas dos sinais, o quê torna a atividade de ensino e o uso bem mais fácil. Isso foi feito através de um sistema (entre outros) denominado “SignPuddle” , disponibilizado na rede no site https://www.signbank.org/.
Essa tecnologia permite que livros em LIBRAS possam ser disponibilizados para surdos, deixando de requerer a tradução LIBRAS para português. Usados como material didático em aulas, suprem dificuldades históricas da obtenção de materiais didáticos para surdos. Simultaneamente, dicionários de LIBRAS on-line, ilustrados normalmente com desenhos gráficos, tradução da palavra em português e seu significado, tal qual um dicionário comum, adicionaram a grafia do sinal em Signwriting permitindo a ampliação e disseminação do método e a utilização conjunta entre surdos e ouvintes (uma obra de referência e exemplo dessa prática no Brasil é Capovilla, Raphael, Temoteo, & Martins (2017).
Contudo, apresenta uma restrição que deve ser levada em conta: ainda é pequena a quantidade de surdos que conhecem o Signwriting, e o domínio do método é por si só um desafio educacional.
3.2 Tradutores com AVATAR
Tradutores com avatar fizeram um enorme sucesso midiático e constituem um importante apelo para a divulgação da LIBRAS. É comum encontrarmos em shoppings centers grandes displays televisivos reproduzindo o Hugo – nome fantasia do personagem do sistema Hand Talk, talvez o de maior sucesso no Brasil.
Pelo menos três sistemas podem ser encontrados com referências comerciais na internet brasileira com esse tipo de recurso tecnológico: o ProDeaf, o Hand Talk, e o Rybena. O primeiro deixou de ser comercializado, e foi incorporado ao Hand Talk, que o comprou. O Rybena permanece disponível nas lojas virtuais de aplicativos para celulares, mas sem dúvida o Hand Talk tem um mercado muito maior.
Segundo a empresa produtora, o aplicativo tem mais de três milhões de downloads, faz mais de doze milhões de traduções a cada mês, e foi premiado diversas vezes e por várias instituições ao redor do mundo (http://www.handtalk.me/br, consultado em 10/12/2020). O alagoano Ronaldo Tenório foi considerado pelo prestigiado MIT um dos jovens mais inovadores do mundo; concursos de aplicativos mobile com patrocínio da ONU elegeram o software como o melhor do mundo em tecnologia social.
O personagem Hugo (ou, mais recentemente, a Maya) é apesentado em 3D, e consegue fazer reconhecimento de voz e texto e traduzir para LIBRAS e, mais recentemente, para ASL – American Sign Language. É uma proeza e tanto para um aplicativo criado em um pequeno estado da região Nordeste do Brasil.
A finalidade comercial mais poderosa do aplicativo é a comercialização para empresas que buscam tornar seus sites mais acessíveis. Assim, o Hugo da Hand Talk pode ficar “embutido” em sites comerciais de qualquer empresa, sendo acionado por surdos ou conhecedores da LIBRAS ou ASL para traduzir o conteúdo escrito.
O sucesso da Hand Talk estimulou iniciativas parecidas ao redor do mundo. A instalação em displays grandes em ambientes de grande público, como shoppings, deu uma enorme visibilidade ao produto e, por consequência, aos próprios surdos e sua língua.
No âmbito público, uma parceria entre o Ministério da Economia (ME), por meio da Secretaria de Governo Digital (SGD) e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), deu origem ao VLibras, que é “um conjunto de ferramentas computacionais de código aberto, que traduz conteúdos digitais (texto, áudio e vídeo) para Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS”. Suas ferramentas são gratuitas e podem ser acessado em https://www.vlibras.gov.br/# (recuperado em 10/12/2020).
Falta mencionar um importante alerta: para os surdos, a tecnologia baseada em AVATAR continua a ser uma tradução superficial e robótica da língua de sinais. Embora facilite para conteúdos padronizados e pequenos, e seja até uma ferramenta interessante para a sala de aula e para o ensino da LIBRAS para ouvintes, a eficácia para os surdos é restrita. Claro que, no futuro, a tendência é de desenvolvimento do aplicativo, que a cada nova versão parece se tornar mais eficaz. No entanto, como os próprios criadores da tecnologia advertem, ele não foi concebido para substituir os intérpretes de LIBRAS.
3.3 Centrais de Intérpretes em vídeo
As Centrais de Intérpretes diferem dos sistemas com avatar por utilizarem intérpretes humanos, profissionais capacitados a fazer a tradução entre o português e as línguas de sinais. Existem vários serviços desse gênero em funcionamento, sendo bastante famoso nos EUA o serviço provido pelo website CONVO (https://www.convorelay.com/shopdeaf, recuperado em 10/12/2020). No Brasil pode ser citado o ICOM LIBRAS (https://www.icom-libras.com.br/, recuperado em 10/12/2020).
As Centrais utilizam recursos técnicos de vídeo por streaming on-line para, usando mais comumente celulares, conectar o surdo ao intérprete, em uma espécie de triangulação da comunicação entre o surdo e pessoas que desconhecem a língua de sinais. O serviço permite ao surdo um enriquecimento da comunicação, pois a tradução oferecida pelo intérprete tem uma gama muito mais vasta de possibilidades.
A sala de aula convencional do surdo em tese dispensa esse tipo de recurso, pois exige a presença do intérprete humano durante o horário da aula. No entanto, as Centrais de Intérpretes estão buscando ampliar a gama de serviços prestados, podendo interagir em vídeos-conferências on-line, por exemplo. Além disso estão buscando gravar alguns conteúdos, que podem ser disponibilizados on-line e facilitar grandemente o dia a dia do usuário de LIBRAS, entrando em áreas não convencionais. Um exemplo seria a tradução de manuais de uso de equipamentos vendidos on-line. Um manual de automóvel por exemplo é oferecido pelos fabricantes em diversos idiomas, porém nunca em LIBRAS, apesar de haver surdos consumidores desses produtos.
Na sala de aula que pretende tornar-se o mais acessível possível, além da presença do intérprete nas sessões presenciais ou on-line onde há a comunicação direta, vídeos e textos podem ser oferecidos interpretados em sinais.
Um exemplo da riqueza de aprendizagem que esse tipo de prática pode sugerir é oferecido pelo trabalho de professores que estão gravando aulas on-line em LIBRAS, e assim suprindo lacunas importantes da educação de surdos.
Assim, a oferta ampliada desses serviços e seu financiamento por recursos públicos pode permitir um avanço na disponibilidade de materiais de referência para o ensino-aprendizagem das pessoas surdas.
4 O Alerta Ético
A tecnologia proporciona inúmeros avanços à sociedade, com benefícios a cada dia mais explícitos. Bersch (2017), como Galvão Filho & Damasceno (2002), atribuem a Radabaugh (1993) uma frase que nos leva a refletir sobre como esses avanços tecnológicos são ainda mais vitais para algumas pessoas em especial: “para as pessoas sem deficiência a tecnologia torna as coisas mais fáceis. Para as pessoas com deficiência, a tecnologia torna as coisas possíveis”.
Mas ao longo da história, percebemos que o preconceito social e a incompreensão sobre as dificuldades do surdo para a aprendizagem causaram mais malefícios às pessoas surdas que a própria privação da audição (Moreira, 2007). Somente o puro preconceito e a ignorância podem justificar o temor que algumas sociedades apresentaram da língua de sinais, prestigiando propostas – em tristes momentos, defendidas também por educadores – de privar os surdos da possibilidade de uso dos sinais para obrigá-lo a falar tal qual os ouvintes.
Mesmo agora, a existência de recursos tecnológicos facilitadores leva algumas pessoas a imaginar que com isso algumas deficiências podem ser “tratadas” ou “curadas”, esquecendo do componente humano que fazem as pessoas se reconhecerem por suas identidades e diferenças que levam, muitas vezes, a uma percepção do mundo e uma capacidade de comunicação distintas do convencional, mas nem por isso imperfeita ou “deficiente”.
Dispor de alta tecnologia sem levar em conta a riqueza da diversidade do humano podem nos levar a achar que robotizar as pessoas pode ser uma solução para a vida social. Esquecer a riqueza da diversidade, agir como se “branquear” as pessoas fosse positivo, retomar a mitologia destruidora que buscava estandartizar as pessoas, “regenerá-las”, ou ensiná-las a ser mais “dóceis”, eliminar os negros, ou os nazistas, ou os surdos ou os autistas.
Parece exagero falar em riscos que nos lembram os terrores das experiências nazistas? Pois bem, depoimentos de surdos em redes sociais alertam para o temor de que sejam submetidos, por exemplo, a cirurgias de implanta coclear ou até mesmo à obrigatoriedade imposta pela família e por professores de uso de aparelhos auditivos (que muitos surdos detestam). Se ainda parece pouco, muitos surdos relatam experiências em sala de aula onde são privados do uso das mãos e sofrem chacotas por usar sinais, tidos como “macaquices”.
Esse perigo nos leva a enfatizar a necessidade da reflexão sobre a ética:
Quando os surdos dizem que eles não são deficientes, mas sim, membros de uma cultura surda, eles querem dizer que os substitutos funcionais e as condutas adaptativas a falta do sentido da audição, desenvolvidas por suas comunidades ao longo de sua história, os habilitam a viver de forma digna e plena, desde que seja respeitada sua língua e sua cultura. Com isso também querem dizer que as tecnologias são bem-vindas quando trazem um ganho real sem pôr em risco sua integridade física ou psíquica. Por isso destacamos que as tecnologias para os surdos e os progressos científicos, sejam qual forem seus objetivos, não podem ser dissociados das escolhas éticas. (Stumpf, 2010, p. 9)
Se a tecnologia assistiva pode proporcionar maravilhas e facilitar a vida das pessoas com deficiência, ela também pode, se usada sem os devidos cuidados éticos e o adequado conhecimento científico, prejudicar a sociedade a associar-se a visões fascistas da humanidade.
5 Considerações Finais
Neste artigo, apresentamos uma referência conceitual de tecnologias assistivas para discutir sua utilização no caso específico de pessoas com surdez, com necessidades específicas de aprendizagem em língua de sinais. Para isso foi necessário distinguir entre a LIBRAS e um dos seus possíveis métodos de escrita, o signwrinting que não são, por sí, tecnologias e sim artefatos da cultura dos surdos, que precisam de uma língua capaz de dispensar referências auditivas.
Assim, adentramos um pouco no conceito da cultura surda, já que a identidade linguística forma elos culturais que asseguramos aos surdos uma identidade cultura específica. Para essas pessoas, três tecnologias específicas foram examinadas em sua capacidade de alavancar suas necessidades de ensino-aprendizagem: a escrita do signwriting; a tradução da LIBRAS por avatares que fazem reconhecimento digital de voz ou texto; ferramentas de aproximação de intérpretes de LIBRAS usando streaming online de vídeo.
As três ferramentas propiciam interessantes oportunidades de aplicação em sala de aula, e todas elas nascem de avanços tecnológicos recentes no uso das tecnologias WEB e sua integração em dispositivos mobile como os celulares, de utilização cada vez mais disseminada. São assim veículos de uma cultura digital cada vez mais presente em nossa época, e que nos permite conviver com as diferenças entre as pessoas, viabilizando um sonho antes impossível ao conhecimento humano, como a tradução automática de línguas, orais ou visuais.
Apesar do avanço que significam e dos efetivos apoios que permitem ao ensino, um alerta específico sobre as questões éticas evocadas pelo avanço tecnológico nos ramos da educação especial foi feito pelo autor, seguindo a esteira de renomados especialistas da área. Assim, embora tecnologicamente possível buscar a convivência de culturas diferentes, é cada vez mais vital preservar o direito fundamental dessas pessoas a seus laços de identidade cultural.
Impossível admitir que a modernidade nos traga de volta a ideia fascistas de “curar” os diferentes pela extinção ou modificação arbitrária das suas características – no caso dos surdos, de língua e cultura — que o fazem distinto e único. Cada vez mais nos compreendemos como seres humanos pelo respeito e capacidade de conviver com nossas diferenças e deficiências.
6 Referências Bibliográficas
Barth, C., & Santarosa, L. (2005). Teclado Virtual para a Escrita da Língua de Sinais. Nuevas Ideas en Informática Educativa. XI Congresso de Informática Educativa, Santiago del Chile. http://www.tise.cl/volumen1/TISE2005/15.pdf
Bersch, R. (2017). Introdução à Tecnologia Assistiva. Porto Alegre, RS. Assistiva Tecnologia e Educação. http://www.assistiva.com.br/Introducao_Tecnologia_Assistiva.pdf.
Capovilla, F. C., Raphael, W. D., Temoteo, J. G., & Martins, A. C. (Orgs.). (2017). Dicionário da língua de sinais do Brasil: A Libras em suas mãos (1a̲ edição, 1a̲ reimpressão). EDUSP.
Galvão Filho, T., & Damasceno, L. (2002). As novas tecnologias e a Tecnologia Assistiva: Utilizando os recursos de acessibilidade na educação especial. III Congresso Ibero-americano de Informática na Educação Especial, Fortaleza.
Lage, A. L. da S., & Kelman, C. A. (2019). Educação de surdos pelo professor surdo, Ferdinand Berthier: Encarando desconcertantes paradoxos e longevas lições. Revista Brasileira de História da Educação, 19, e050–e050. https://doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e050
Moreira, P. (2007). O fator linguístico na aprendizagem e desenvolvimento cognitivo da criança surda. Porsinal. http://www.porsinal.pt/index.php?ps=artigos&idt=artc&cat=23&idart=72
Perlin, G., & Strobel, K. (2014). História cultural dos surdos: Desafio contemporâneo. Educar em Revista, spe‑2, 17–31. https://doi.org/10.1590/0104–4060.37011.
Stumpf, M. R. (2005). Aprendizagem de escrita de língua de sinais pelo sistema Signwriting: Língua de sinais no papel e no computador. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/5429
Stumpf, M. (2010). Educação de Surdos e Novas Tecnologias. UFSC, Florianopólis, SC.
[1] Graduação. Especialização. Mestrando em Tecnologias Emergentes em Educação pela Must University. E‑mail.
[2] Bersch (2017), apoia-se nos autores Cook e Hussey (1995), que por sua vez remetem o conceito ao ADA — American with Disabilities Act.